segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O Terramoto de 1755 - I


Amanheceu soalheiro e radioso aquele 1º de Novembro de 1755, apenas um pouco quente de mais para a época. O céu azul reflectia-se nas águas calmas do Tejo, que espraiando-se aos pés da cidade mais parecia um lago, onde algumas embarcações atracadas ao cais junto ao Paço da Ribeira, balouçavam docemente.
Era Dia de Todos os Santos, e os sinos das igrejas repicavam, chamando os fiéis. Embora fosse um sábado, devido à solenidade da data a maioria da população não trabalhava e corria apressada, deixando em casa as braseiras e as velas acesas, devido ao frio, e enchendo os templos onde desde muito cedo as missas se sucediam umas às outras. Os fidalgos, esses, só ouviriam a sua missa mais tarde, lá por volta das 11horas ou meio-dia. A família real tinha, partido de manhãzinha para o seu paço de Belém, nos arredores de Lisboa, onde ouviria missa e passaria o dia.
De súbito, e alguns minutos depois das nove e meia da manhã, um ruído estranho como se fosse um trovão subterrâneo, ouviu-se por toda a cidade e o solo começou a oscilar com um movimento semelhante ao balanço dos navios. Num breve espaço de seis minutos o tremor aumentou de intensidade, numa progressão espantosa. Os edifícios oscilavam e desmoronavam-se, as cúpulas das igrejas balouçavam de uma maneira aflitiva, e soaram os primeiros gritos de terror:
- Misericórdia! Misericórdia!
As pessoas, assustadas, logo que começaram a sentir os abalos nas suas casas, fugiram para as ruas, ficando logo centenas delas sepultadas de imediato sob as paredes das casas que ruíam. As que estavam nas igrejas, tentaram também alcançar a rua, mas grande parte delas ficou logo esmagada no aperto dessa tentativa de evasão. Com enorme fragor, naves inteiras abateram, esmagando os restantes. Uma espessa nuvem de poeira enchia os ares, e através dela apenas se divisavam ruínas.
O barulho parou cinco minutos. A seguir, ainda a população não tivera tempo de se refazer do pânico que sentia, um segundo abalo, mais curto, mas de maior intensidade, durando apenas três minutos, sacudiu as casas com furor, de um lado para o outro, fazendo desabar o restante. Ao mesmo tempo, das entranhas da terra, escapando-se pelas enormes fendas abertas, saiu um vapor quente, muito denso, que, juntamente com a poeira das casas derrubadas, formou uma escuridão completa, tapando a luz do Sol, e espalhando miasmas pestilentos. Os sobreviventes a custo se mantêm de pé, pois os abalos atiram-nos ao chão. Cegos pela poeira, vagueiam como que alucinados, tropeçando nos cadáveres calcinados e morrendo alguns asfixiados pelo fumo dos incêndios.
O capitão de um navio, que se encontrava ancorado no Tejo, afirmou ter visto a cidade, que ainda momentos antes estava tão bela, “ondular para trás e para a frente, como o mar quando o vento começa a levantar-se”.
Como era dia santificado, as igrejas tinham todas as suas velas acesas, o que somado às braseiras e círios ou lamparinas deixadas nas residências, provocaram dezenas de incêndios a que era impossível acudir, porque as ruas geralmente muito estreitas, estavam completamente entupidas com os escombros. De sob as ruínas subiam os gemidos e gritos dos feridos, que tinham ficado presos debaixo dos vigamentos, mas a quem ninguém pensava em acudir, porque todos queriam fugir o mais depressa possível.
O leito do Tejo sofrera uma convulsão tão violenta que as âncoras de alguns navios fundeados pularam fora de água, como peixes voadores e o rio fugia como que horrorizado das margens, repelido pela convulsão da Terra…
Imediatamente após a cessação do tremor, viram-se entrar pela barra dentro vagas enormes de dezasseis pés de altura, que apanhando as embarcações, as jogaram às praias, ou vieram depô-las em frente do paço da Ribeira. As poucas chalupas que resistiram foram ocupadas pela multidão em fuga e afundaram-se com o peso.
O Cais da Pedra, mandado construir por D. João V, desapareceu debaixo de água com todas as pessoas que ali estavam e as vagas crescendo em altura, galgaram a parte baixa da cidade, pulando sobre as ruínas, até atingir as cercanias das portas de Santo Antão, alagando o Rossio para depois se retirarem e voltarem com a mesma fúria quebrando-se nas paredes dos edifícios, trazendo consigo, enrolada nas ondas, a morte debaixo de um novo aspecto, arrastando consigo todos aqueles que se dirigiam para o rio.
Às onze da manhã, novo abalo trouxe consigo mais vagas, que para além de nova devastação, deixaram em terra inúmeras vítimas de naufrágios no rio, tornando ainda mais sinistro o quadro já de si medonho da cidade em ruínas.
Os incêndios tinham-se arrastado do centro para a periferia e ao cair da noite Lisboa estava envolvida em chamas, tão altas que se avistavam de Santarém. Por todo o lado se ouvia o pranto dos que choravam a morte dos seus entes queridos e os gemidos dos muitos feridos e estropiados, muitos deles ainda debaixo dos escombros das suas casas e que eram deixados à agonia de uma morte lenta. Com o desmoronar das prisões bandos de facínoras acharam-se em liberdade e entregaram-se a todo o tipo de violências, matando, pilhando, violando, mutilando os mortos para lhes roubarem os anéis, ajudando a incrementar os incêndios com as tochas que atiravam para o interior das ruínas à procura do que pudessem roubar…
O Rossio viu-se inundado de milhares de pessoas que choravam, gritavam, batiam-se no corpo e no rosto até fazerem sangue, muniam-se de crucifixos e imagens, entoando ladainhas e obrigando os moribundos a cerimónias religiosas, convencidos que tinha chegado o Dia do Juízo Final. No meio de tudo isto, e para aumentar ainda mais o terror no espírito dos sobreviventes, os padres, de crucifixo na mão, gritavam que a catástrofe era um tremendo castigo do Senhor, era a Ira Divina pelos pecados cometidos.
Nos paços de Belém o rei D. José I, abatido por esta fatalidade, apertava a cabeça nas mãos, perguntando:
- Que se há-de fazer? Que se há-de fazer para merecer a misericórdia Divina?
Ao que o Marquês de Pombal, muito sereno, respondeu:
- Senhor! Sepultar os mortos e cuidar dos vivos!

Ó míseros mortais! Ó terra deplorável!
De todos os mortais monturo inextricável!
Eterno sustentar de inútil dor também!
Filósofos que em vão gritais: «Tudo está bem»;
Vinde pois, contemplai ruínas desoladas,
Restos, farrapos só, cinzas desventuradas,
Os meninos e as mães, os seus corpos em pilhas,
Membros ao deus-dará no mármore em estilhas,
Desgraçados cem mil que a terra já devora
Em sangue, a espedaçar-se, e a palpitar embora,
Que soterrados são, nenhum socorro atinam
E em horrível tormento os tristes dias finam!
Aos gritos mudos já das vozes expirando,
À cena de pavor das cinzas fumegando,
Direis: «Efeito tal de eternas leis se colha
Que de um Deus livre e bom carecem de uma escolha»?
Direis do amontoar que as vítimas oprime:
«Deus vingou-se, e a morte os faz pagar seu crime»?
As crianças que crime ou falta terão, qual?
Esmagadas sangrando em seio maternal?
Lisboa, que se foi, pois mais vícios a afogam
Que a Londres ou Paris, que nas delícias vogam?
Lisboa é destruída e dança-se em Paris.

Voltaire, Poema sobre o desastre de Lisboa.

Fontes: Paice, Edward – A Ira de Deus, Casa das Letras, 2009
Domingues, Mário – O Marquês de Pombal, Ed. Romano Torres, 1955
Pinheiro Chagas, Manuel – História de Portugal

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