segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Um Conto de V. Woolf


Uma Casa Assombrada

A qualquer hora que uma pessoa acordasse havia uma porta a fechar-se. De quarto em quarto, lá iam eles, de mãos dadas, levantando aqui, abrindo ali, certificando-se…um casal de fantasmas.
- Deixámo-lo aqui – disse ela.
E ele acrescentou: Ah, mas aqui também!
- Está lá em cima – murmurou ela.
- E no jardim – sussurrou ele.
- Devagarinho – disseram ambos -, senão vamos acordá-los.
Mas não, não nos acordavam.
- Andam à procura; estão a afastar a cortina – poderia a pessoa dizer e, depois, continuar a ler mais uma ou duas páginas. – Agora é que encontraram – diria, cheia de certezas, detendo o lápis na margem. E depois, cansada de ler, poderia levantar-se e ir ver com os próprios olhos, a casa toda vazia, as portas abertas, só os pombos a arrulhar contentes ao ritmo do zumbido da debulhadora que vinha da quinta.
- Porque vim para aqui? O que queria encontrar? - As minhas mãos estavam vazias. – Estará lá em cima, talvez? – No sótão estavam as maçãs. Portanto, de novo para baixo, o jardim em sossego, como sempre, só o livro havia deslizado para a relva.
Mas eles tinham encontrado na sala o que procuravam. Não que alguém alguma vez pudesse vê-los. As vidraças reflectiam maçãs, reflectiam rosas; no vidro todas as folhas eram verdes. Se eles cirandavam pela sala, a maçã só virava o seu lado amarelo. Porém, no instante seguinte, se a porta se abria, espraiava-se pelo chão, pairava nas paredes, pendia do tecto…o quê? As minhas mãos estavam vazias. A sombra de um tordo cruzou a carpete; dos poços mais fundos do silêncio, o pombo soltou o seu arrulho.
- A salvo, a salvo, a salvo, - batia docemente a pulsação da casa. – Enterrado, o tesouro; o quarto… - a pulsação parou subitamente. Oh, era aquilo o tesouro escondido?
Instantes depois a luz tinha esmorecido. Estará talvez lá fora no jardim? Mas as árvores teciam trevas para um raio errante de sol. Tão sublime, tão raro, frio e mergulhando abaixo da superfície, o raio que eu procurava estava sempre a arder atrás do vidro. A morte era o vidro; a morte estava entre nós, chegando primeiro à mulher, muitos séculos antes, abandonando a casa, selando todas as janelas; os quartos ficaram às escuras. Ele deixou a casa, deixou-a a ela, foi para o norte, foi para o leste, viu as estrelas rodar no céu do Sul; procurou a casa, encontrou-a abandonada sob as colinas dos Downs.
- A salvo, a salvo, a salvo – batia alegremente a pulsação da casa. – O Tesouro…vosso.
O vento ruge na alameda. As árvores inclinam-se e pendem para aqui e para ali. Raios de lua esparrinham e chapinham na chuva como loucos. Mas o raio de luz do candeeiro cai a eito da janela. A vela arde imóvel e imutável. Vagueando pela casa, abrindo janelas, em surdina para não nos acordar, o casal de fantasmas procura a sua felicidade.
- Dormimos aqui – diz ela.
E ele acrescenta: - Beijos sem conta.
- Acordar de manhã…
- A prata entre as árvores…
- Lá em cima…
- Quando chegava o Verão…
- O Inverno é tempo de neve…
As portas fecham-se ao longe, batendo suavemente como o pulsar de um coração.
Eles aproximam-se, param à porta. O vento abranda, a chuva escorre prata pelos vidros. Os nossos olhos ensombram-se, não ouvimos passos ao nosso lado; não vemos nenhuma senhora estender sua fantasmagórica capa. As mãos dele protegem a lanterna.
- Olha – diz ele num sussurro. – Dormem profundamente. Com o amor nos lábios.
Inclinados, seguram a candeia prateada por cima de nós, olham-nos longamente, profundamente. Pausam, longamente. O vento sopra a eito; a chama inclina-se levemente. Raios desgarrados de luar cruzam o chão e a parede, e, encontrando-se, mancham os rostos inclinados; rostos perscrutadores; rostos que examinam os entes adormecidos em busca da felicidade escondida.
- A salvo, a salvo, a salvo – bate o coração da casa com orgulho. – Tantos anos…diz ele, suspirando. – E encontraste-me outra vez.
- Aqui – murmura ela -, dormindo; lendo no jardim; rindo, virando maçãs no sótão. Foi aqui que deixámos o nosso tesouro…
Inclinados, a sua luz abre-me as pálpebras.
A salvo! A salvo! A salvo! – bate loucamente a pulsação da casa. E eu, acordando, exclamo: - Ah, então é este o vosso tesouro enterrado? A luz do coração.

Virgínia Wolf – Biblioteca de Verão do Diário de Notícias

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