quinta-feira, 31 de maio de 2012

E A Culpa Foi Do Cutelo…

No tempo em que os seres humanos se alimentavam apenas de frutos, grãos e legumes, e não tinham ainda o costume de sacrificar animais aos seus deuses, vivia em Atenas um estrangeiro chamado Sópatro, habitando numa propriedade que lhe pertencia.
Ora num certo dia em que Sópatro sacrificava aos deuses, apareceu um touro que comeu as ervas e o grão que ele tinha disposto no altar. Indignado, matou o animal com um machado e, pensando depois que tinha cometido um sacrilégio, partiu para Creta.
Na sua ausência, a fome começou a grassar em Atenas e os habitantes da cidade perguntaram ao oráculo a razão para tal calamidade. A resposta foi que somente Sópatro poderia remediar o mal e encontrar o culpado…
A cidade, então, enviou mensageiros a Creta, onde o encontraram ainda deprimido pelo que fizera. Sem saber como proceder perante a questão colocada pelos enviados, pediu a Atenas que lhe concedesse a cidadania, o que lhe foi concedido.
Ao regressar, a sua primeira ideia foi compartilhar a culpa com todos os atenienses e, para tal, reuniu o povo da cidade dando-lhes instruções para que lhe trouxessem um touro igual ao que ele abatera. O animal, purificado pelas jovens atenienses, foi então morto por Sópatro com um cutelo igualmente purificado e afiado pelos outros atenienses. Depois, foi cortado em pedaços que foram distribuídos pelos presentes, de modo que todos foram culpados pela morte do touro.
Sópatro sugeriu então que se criasse um tribunal para julgar, definir e punir o culpado. Depois de muitos e longos debates, a culpa foi atribuída ao cutelo, pelo que foi condenado a ser lançado ao mar…
E a lenda diz que depois de executada a sentença, a fome cessou!


sábado, 26 de maio de 2012

A Longa Viagem de Hsuan-Tsang – I

Embora as civilizações da China Imperial e da antiga Índia se tenham desenvolvido relativamente isoladas, separadas pelas altas montanhas dos Himalaias, os contactos comerciais, tanto por via marítima como terrestre, sempre existiram entre ambas. Contudo, foi através da religião e não do comércio, que na Idade Média os laços culturais entre elas se fortaleceram.
O Budismo, que evoluiu na Índia a partir dos ensinamentos de Siddharta Gautama, (sec. VI a. C.), mais conhecido como Buda, o Iluminado, penetrou na China no princípio do sec. II d.C., e peregrinos chineses efectuavam a arriscada viagem até à Índia, a fim de visitarem os lugares santos e recolherem textos sagrados.
Mas nenhum ficou mais conhecido do que Hsuan-Tsang, também conhecido como Hiuan-Tsang, cuja peregrinação ao longo de 17 anos o tornou num monge venerado na sua própria época, e deu origem a uma compilação não só das suas das suas viagens, mas também dos contos e lendas a ela associados, sendo considerada uma das obras-primas da literatura chinesa. Hsi-Yu chi (Viagem ao Ocidente) é também um tributo perene a um homem cuja única ambição era a busca do conhecimento.
Nascido em Luoyang, Henan, no ano de 602, como Chén Hui ou Chén Yi, era o mais novo dos quatro filhos de uma família conhecida há gerações pela sua cultura, sendo educado por seu pai na mais estricta observância da filosofia de Confúcio. Mas desde cedo se sentiu atraído pelo budismo, possivelmente por influência do seu irmão mais velho, ele próprio um monge budista, e após o falecimento do seu pai em 611, ingressou num mosteiro onde a sua inteligência lhe granjeou o favor excepcional de tomar ordens com apenas 13 anos de idade, sendo monge de pleno direito aos vinte anos.
À medida que se apercebia da escassez de textos sagrados budistas em língua chinesa, decidiu partir para a Índia e percorrer as regiões que um milénio antes, os “pés de ouro” do princípe Sidharta Gautama, o Buda, tinham pisado. Poderia também “interrogar os sábios sobre as questões que lhe atormentavam o espírito”, conforme escreveu mais tarde. Assim, em 629, aos 27 anos de idade, e apesar da proibição do imperador T’ai-Tsong, da dinastia Tang para a sua viagem ao estrangeiro devido ao estado de guerra existente no país, Hsuan-Tsang lançou-se numa jornada solitária através dos desertos e dos gelados desfiladeiros das montanhas, que já tinham tirado a vida a grupos de peregrinos bem mais equipados.
Hsuan-Tsang era um homem atraente, de estatura elevada, com um tom de voz cativante e maneiras delicadas. Deixando a sua casa no Nordeste da China, encetou uma caminhada a pé ao longo de 8000 Kms., através da China Setentrional e do Deserto de Gobi, a que os chineses chamavam ”o rio de areia onde não se encontram nem aves, nem quadrúpedes, nem água, nem pastagens” prosseguindo em direcção a Samarcanda através dos colos gelados da cordilheira de Tien Shan, nos Himalaias, inflectindo depois para sul em direcção a Cabul, no Afeganistão, e descendo até à região noroeste do subcontinente indiano, a muitas centenas de quilómetros de distância. Arrostou ora com calores sufocantes, ora com tempestades de neve, foi assaltado por ladrões e quase morreu às mãos de piratas no rio Ganges. Passou fome e sede, viajando muitas vezes sem companheiros e sem guias.

sábado, 19 de maio de 2012

NEVOEIRO


Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,

define com perfil e ser

este fulgor baço da terra

que é Portugal a entristecer –

brilho sem luz e sem arder,

como o que o fogo-fátuo encerra.



Ninguém sabe que coisa quere.

Ninguém conhece que alma tem,

nem o que é mal nem o que é bem.

(Que ância distante perto chora?)

Tudo é incerto e derradeiro.

Tudo é disperso, nada é inteiro.

Ó Portugal, hoje és nevoeiro...



É a Hora!



Fernando Pessoa - Mensagem


sexta-feira, 11 de maio de 2012

Uma Missiva do Rei…- II

O Rei-Sol Marroquino

Moulay Ismaïl Ibn Sharif (1645? – 22 March 1727) reinou de 1672 a 1727, em Marrocos, sucedendo no trono ao seu meio-irmão Moulay Al-Rashid, morto acidentalmente de uma queda de cavalo. Segundo soberano da nova dinastia alauita que tinha chegado ao poder em 1659, após a conquista de Marraquexe, é considerado como uma das principais figuras históricas daquele país. Cognominado de “Rei Guerreiro”, foi também apelidado de “O Sanguinário”, devido à sua famosa crueldade. Ao herdar um trono enfraquecido não só pelas revoltas internas como também pelas lutas dinásticas, o soberano tratou da unificação do reino, embora não tivesse o apoio das tribos da região, tanto berberes como beduínas. Formou, para isso, um exército constituído por escravos negros originários do Senegal, do Mali e da Guiné (os chamados Abid al-Bukhari), a famosa Guarda Negra, que chegou a possuir 150.000 homens, introduzindo o emprego de armas e técnicas militares europeias.
E foi com este exército que entre 1679 e 1696, Moulay Ismail combateu não só os Turcos Otomanos, que venceu, como retomou aos Espanhóis e Ingleses, as possessões de Al-Mamurah (La Mamora), Tanger e Larache, consolidando a sua posição no trono marroquino. Não conseguiu contudo, conquistar Mazagão aos portugueses.
Contemporâneo de Luís XIV, o Rei-Sol, que muito admirava e a quem se equiparava, manteve com o soberano francês relações diplomáticas, chegando mesmo a pedir em casamento a princesa Maria Ana de Bourbon, filha legitimada de Luís XIV, que recusou o pedido. O seu embaixador em França, o almirante dos “mares marroquinos” Abdallah Ben Aicha, é o autor do primeiro ensaio em árabe que descreve Versalhes e o esplendor da corte real francesa. Para além da França, favoreceu também as relações diplomáticas com outras potências europeias, escrevendo numerosas cartas aos reis europeus, principalmente ao rei francês e a D. Pedro II, de Portugal, instando para que se convertessem ao islamismo.
Decidido a construir para si uma Versalhes marroquina, transferiu a capital do país, Marrakech, para Meknés, iniciando um novo ciclo imperial de fausto e esplendor que ainda hoje é considerado como o mais importante e rico da história de Marrocos. Para isso, foram necessários milhares de trabalhadores, entre prisioneiros cristãos, criminosos comuns, artesãos, escravos…Os prisioneiros cristãos, na sua maioria capturados pelos seus corsários, nas famosas “razias”, eram alojados ao pé do seu palácio, na conhecida Prisão dos Cristãos, para que os seus gritos de desespero chegassem facilmente aos ouvidos dos embaixadores estrangeiros! Serviam de moeda de troca por cativos mouros e eram resgatados a peso de ouro. Muitos morreram por lá.
Em cerca de 47hectares, todo um conjunto de Palácios, tanques, mesquitas, jardins, estábulos, celeiros e fortalezas, rodeados por um muro de quatro metros de espessura, ali foi construído, para albergar toda a enorme família imperial, os seus doze mil cavalos e a famosa Guarda Negra, composta por vários milhares de homens. Um aqueduto foi construído para abastecer este enorme complexo habitacional e monumentos das cidades de Fez e Marraquexe, as antigas capitais reais, foram destruídos para não ensombrarem a beleza de Meknès. Até mesmo das ruinas romanas de Volubilis vieram pedras para embelezarem o palácio. Em 1755, o terramoto de Lisboa fez ali grandes estragos.
Governou o seu país com mão de ferro, e para intimidar os seus rivais, mandou que os muros da cidade fossem “adornados” com as cabeças de 10.000 dos seus inimigos. Lendária é a facilidade com que condenava os seus criados, que considerava preguiçosos, a serem decapitados ou torturados. Cerca de 30.000 morreram como consequência de suas decisões.
O seu harém era composto por várias centenas de concubinas (500?), que, segundo o relato do embaixador francês Dominique Busnot, lhe deram 888 filhos (548 rapazes e 340 raparigas?), mas as suas quatro esposas principais mantiveram sempre o seu afecto.
Quando faleceu, aos oitenta anos de ida de, e 55 de reinado, o seu império estendia-se desde a Argélia até à Mauritânia e o seu nome ainda hoje é respeitado em todo o reino, devido à sua piedade religiosa e por ter conseguido manter a paz numa das principais rotas comerciais do seu tempo, por onde se escoavam o ouro, o marfim, o ébano e os escravos negros vindos de toda a África.
Em 1757, o seu neto Mohammad III, transferiu a capital de volta a Marrakech, e retirou de Meknes uma boa parte das suas riquezas para construir uma nova cidade imperial.
O grande Mausoléu de Ismail está aberto mesmo a não muçulmanos como testemunho da sua grandeza, mas à sala do túmulo apenas os muçulmanos têm acesso. Ao seu lado repousam a sua primeira mulher, Lalla Khunta e dois dos seus filhos e ladeando o túmulo estão dois relógios oferecidos pelo rei Luís XIV ao monarca marroquino.

domingo, 6 de maio de 2012

DIA DA MÃE

Para todas as Mães do Mundo:

Para Sempre

Por que Deus permite
Que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
É tempo sem hora,
Luz que não apaga
Quando sopra o vento
E chuva desaba,
Veludo escondido
Na pele enrugada,
Água pura, ar puro,
Puro pensamento.

Morrer acontece
Com o que é breve e passa
Sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
É eternidade.
Por que Deus se lembra
- Mistério profundo -
De tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
Baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
Mãe ficará sempre
Junto de seu filho
E ele, velho embora,
Será pequenino
Feito grão de milho.

Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Uma missiva do Rei de Mequines (Meknés-Marrocos), para o Rei de Portugal D. Pedro II, em 1706.


“Há um só Deus todo-poderoso em todo o Mundo, ele seja louvado para todo o sempre, como aquele a quem se deve tudo, que ele há-de ajudar a quem tiver justiça, a razão por que é bendito entre as nações do mundo.

                               Muley Ixmael, filho de Xarife e de Rey.

 Mui alto, poderoso rei D. Pedro II de Portugal, aquele a quem publica a fama, numa mão a espada e noutra a justiça.
A ti, rei verdadeiro de todos os Estados de Portugal, com as notícias que tenho do bem que fazes aos meus por meu respeito, te considero digno da minha amizade, e que eu seja agradecido. Pela prática que o meu capitão mor do mar Benaxe me fez, que sendo cativo dos Ingleses, arribou ao porto dessa corte; e que chegando à tua presença real, logrou a maior fortuna, tendo-a por esse respeito, desmentido a má que lhe tinha sucedido no seu cativeiro, dando-lhe o resplendor da tua real Pessoa uma grande alegria, pela afabilidade e carinho que um escravo mouro achou num monarca tão superior, dando-lhe a esmola de trinta meticaes de ouro, oferecendo-lhe tudo o mais.
Estas finezas, meu Rei, me puseram em grande agradecimento, parecendo-me que trazes nas tuas veias aquele ilustre sangue do teu antecessor El-Rei D. Sebastião, que valendo-se dele o Xarife Muley Ahmed, meu parente, por chegar à sua presença, empenhou Pessoa, Reino e Fazenda, em o favorecer e assim o executou; História que temos nos nossos livros pelas maiores finezas que reis fizeram no mundo, por gente de diferente Ley. Pois EL-Rei de Castela, a que o mundo chamou Filipe II o não quis fazer, e se escusou de dar-lhe ajuda, e ele sozinho tomou a seu cargo uma obrigação de tanto peso; e torno a dizer que esta história de fineza está por lembrança enquanto o Mundo for Mundo.
E como te considero deste mesmo ânimo, conheço a tua descendência e sangue que te assiste deste rei. E te afirmo pela lei que sigo que te hei-de servir com tudo quanto no meu reino tenho, com grande vontade, e não se desacredite este meu oferecimento, pelos respeitos de me mandar os tempos passados um Português do teu reino a comprar cavalos, o que pus em conselho nos pareceres dos meus Xerifes e Tables, que todos uniformemente disseram ser contra a minha lei que nos proíbe o não possamos fazer, e quando alguns reis meus antecessores o fizeram, fora em caso de necessidade, a pique de perder a vida ou o reino, e somente nestes termos o podemos fazer; e como esta necessidade me não obriga, fora pôr o meu governo em má opinião dos meus, e se não fora este preceito, não te havia de faltar pelo amor que te tenho.
E se quiseres os cativos portugueses resgatados todos, os darei com vontade, e por este respeito busquei a Joseph Hespanhol, meu cativo, por ser homem de verdade e de razão, de quem faço muito caso e está casado com uma portuguesa, deixando dois filhos e uma filha nessa corte; e como conheço o seu procedimento, o mando a esse Reino, para aviso de que desejo dar resgate aos cativos portugueses; e se para este aviso me quiseres mandar uma pessoa de autoridade, o estimarei, ou com aviso mandarei eu o meu Capitão mor Benaxe, e tudo o que tratar com ele será da minha vontade”.

 Fontes:

Jornal da História

 Quem era Muley Ismael e porque escreveria ao Rei de Portugal?